Entregadores se unem por melhores condições de trabalho nos aplicativos: ‘Entrego comida com fome’, diz ciclista

Eles pedem remuneração mais justa, diálogo com empresas de aplicativos e política mais clara de trabalho. ‘Fazemos 20 entregas por dia, estamos tirando pessoas das ruas e ajudando no controle da pandemia’, diz motoboy.

Entregadores de serviços de delivery da Grande São Paulo têm se juntado para pedir melhores condições de trabalho aos aplicativos para quem prestam serviço.

As reclamações dos entregadores em geral são três: a queda no valor das taxas de remuneração, que têm caído na medida em que aumenta a quilometragem e o número de entregas pelo valor pago, os bloqueios indevidos e sem justificativas dos profissionais, que podem ficar dias sem trabalhar e sem saber o motivo, e o sistema de pontuação de ranking, que é o que define os dias e a área em que o entregador pode atuar, por exemplo.

Na Grande São Paulo, um grupo de motoboys e ciclistas que se autointitula como “entregadores antifascistas” reuniu manifestantes na última sexta-feira (5) e ocupou uma faixa da Avenida Paulista.

“O pessoal esquece que um motoboy faz de 10 a 20 entregas por dia, então ele tira 20 pessoas por dia das ruas. Mas os aplicativos estão explorando isso pagando menos, bloqueando sem justificativa… Não queremos que acabem os aplicativos e não queremos ser ricos, queremos apenas um valor justo pelo nosso trabalho”, afirma o motoboy Diógenes Silva de Souza, 43 anos.

Os entregadores, porém, reivindicam apenas o direito a ter um vale-refeição, segundo Paulo Roberto da Silva Lima, de 31 anos. Conhecido como Gallo, o motoboy ganhou popularidade ao gravar vídeos expondo as condições de trabalho que viralizaram na internet.

“Já trabalhei com fome várias vezes carregando comida nas costas. As reivindicações dos entregadores antifascistas são ligadas à nossa comida. Não abraçamos outras pautas porque acreditamos que é uma luta por vez e em primeiro lugar é nossa alimentação para dar sequência a outras. Somos antifascistas porque acreditamos que o fascismo é quando um poder maior não deixa os poderes menores interagirem e extingue o diálogo. O fascismo vai de encontro à própria democracia”, afirma Gallo.

O ciclista Tiago Camargo Bonini, de 28 anos, trabalha como entregador há um ano quando perdeu o emprego como mecânico automotivo. Ele sai de Diadema, na Grande São Paulo, e chega a rodar 100 km por dia com a bicicleta para fazer as entregas. Tiago conta que come arroz e feijão de manhã antes de sair de casa e só come de novo à noite, quando chega em casa. “Trabalho com fome entregando comida todos os dias”, afirma.

Outro entregador que prefere não se identificar por medo de retaliações passou a fazer parte do grupo por se identificar com o tema e achar injusta a condição de trabalho.

“Nós trabalhamos na rua e não temos condições de comprar comida todos os dias e nem trazer marmita de casa porque estraga. Queremos o direito de comer. Falam que somos mortos de fome, mas quem trabalha em escritório tem VR, porque não podemos ter também?”, diz o entregador.

O ciclista Tiago Bonini e o motoboy Gallo, do grupo entregadores antifascistas: eles lutam por direito à alimentação durante período de trabalho — Foto: Arquivo pessoal
O ciclista Tiago Bonini e o motoboy Gallo, do grupo entregadores antifascistas: eles lutam por direito à alimentação durante período de trabalho — Foto: Arquivo pessoal

Prejuízo do entregador

Os aplicativos não têm relação de emprego formal com os trabalhadores dessas plataformas. Embora existam processos que busquem estabelecer vínculo empregatício, o atual parecer do Superior Tribunal de Justiça (STJ) é que não há relação formal entre esses prestadores de serviços e aplicativos como Uber, iFood, Rappi e 99. Neste ano, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) tomou parecer semelhante, levando em conta a ausência de subordinação como argumento.

A falta de vínculo entre os aplicativos e os entregadores torna mais difícil estender a eles direitos comuns a outros trabalhadores. Além de não terem direito a vale-refeição, vale-transporte e férias remuneradas, fica com esses trabalhadores o prejuízo de cancelamento de entregas, por exemplo.

“Se eu já saí do restaurante com a comida e o cliente cancela o pedido, eu tenho de arcar com o valor integral do pedido. Então se é um pedido de R$ 100, por exemplo, eu vou ficar devendo aquela valor pro aplicativo. Muitas vezes a gente não ganha nada no dia e ainda fica devendo”, diz Tiago.

Remuneração pela metade

O aumento do desemprego em todo o país pode ter contribuído para aumentar a quantidade de profissionais que viram nas entregas uma fonte de renda. Só o iFood tem cerca de 170 mil entregadores em todo o Brasil e viu o número de candidatos a vagas de entregador da plataforma mais que dobrar em março. De acordo com os entregadores, com o aumento da demanda, os aplicativos de entrega passaram a pagar menos pelo serviço e a exigir mais dos profissionais.

“Tem muita gente perdendo o trabalho e comprando uma motinha parcelada com o seguro-desemprego, então aumentou muito a quantidade de motoboys nas ruas. Até por isso os aplicativos estão usando o excesso de mão de obra para abusar nos bloqueios e diminuir a remuneração”, opina Diógenes.

O aumento de motoboys nas ruas também pode ser um dos motivos do aumento de mortes deles no trânsito. Em maio, as mortes de motociclistas na cidade de São Paulo aumentaram 37,9% enquanto que, no estado, foi de 7,2%.

Mas se engana quem pensa que os entregadores estão lucrando mais com o aumento dos pedidos de entrega desde o início do isolamento social. De acordo com Diógenes, a remuneração caiu pela metade.

“Por exemplo, antes eram R$10 para andar 5 ou 6 km, agora é R$ 5. Eu não aceito, mas tem outro cara que vai lá e aceita, sempre vai ter alguém para aceitar. Não se ganha o que ganhava 2 anos atrás, quando você trabalhava oito horas por dia para ganhar R$100 por dia. Hoje em dia você tem de trabalhar 14, 15 horas por dia para tirar isso”, relata ele.

Tiago também notou que caiu a remuneração dos entregadores.

“Depois da pandemia diminuiu muito o valor que eles pagam. Antes se eu trabalhasse o dia inteiro das 10h às 22h eu tirava R$ 50, R$ 60 por dia, um dia bom eu fazia R$ 70, R$ 75. Agora na pandemia eu faço R$ 30 no mesmo período de tempo”, afirma.

Ciclistas relatam que aplicativos priorizam entregas feitos pelos motociclistas e pensam em migrar de transporte — Foto: Kid Júnior/G1
Ciclistas relatam que aplicativos priorizam entregas feitos pelos motociclistas e pensam em migrar de transporte — Foto: Kid Júnior/G1

Contato com Covid-19

Outra reclamação dos entregadores ouvidos pela reportagem é o bloqueio deles do sistema de entregas dos aplicativos e a falta de diálogo com essas empresas.

Um motoboy que prefere não se identificar conta que foi bloqueado pela Rappi por se negar a fazer uma entrega diretamente a uma pessoa com Covid-19.

“Quando cheguei no lugar de entrega fui avisado pelo porteiro que me aconselhou a não subir por esse motivo. Avisei o cliente que iria entregar na portaria, mas ele achou ruim porque queria que eu subisse. Falei que não iria subir e entreguei na portaria, mas fui bloqueado logo depois pelo aplicativo. Tentei falar com eles, mas não me responderam”, afirma.

De acordo com a Rappi, os bloqueios na plataforma “são restritos ao não cumprimento dos Termos & Condições” e a empresa diz que comprou álcool em gel e máscaras para os entregadores parceiros e que vem “intensivamente distribuindo.”

Sobre a entrega para clientes com Covid-19, a Rappi diz que desenvolveu e colocou em prática a “entrega sem contato”, sistema em que os entregadores deixam o pedido na porta do cliente e se afastam para evitar a proximidade. Além disso, a empresa disse estar incentivando o pagamento via aplicativo para evitar o contato com cédulas de dinheiro.

Entregadores reclamam de sistema de bloqueio do Rappi  — Foto: Reprodução
Entregadores reclamam de sistema de bloqueio do Rappi — Foto: Reprodução

‘Não paga nem a gasolina’

O sistema de ranking também é alvo de reclamação por parte dos entregadores. De acordo com Tiago, por exemplo, o iFood tem a opção de escolher ou recusar uma corrida. Eles mostram a distância e o valor pago por ela, mas se o entregador recusar uma corrida, fica o dia inteiro bloqueado e não é chamado para novas entregas.

Já o Uber Eats não informa antes quanto paga pela entrega no momento do pedido. “Depois você vê que andou 5 km por R$ 3, não paga nem a gasolina”, opina Tiago.

Diógenes diz que os aplicativos também bloqueiam os entregadores que não trabalharem de sexta a domingo.

“Eles te obrigam a trabalhar todos os sábados e domingos para você pontuar, senão você fica bloqueado durante a semana. Se você trabalhar de segunda a sábado, não pontua, você é obrigado a trabalhar domingo também, porque se você não tiver ponto, não consegue trabalhar durante a semana”, explica Diógenes.

“Eles não querem ter vínculo com a gente, mas querem nos obrigar a ter vínculo com ele, nos encurralam. Às vezes a entrega é muito longe para ganhar muito pouco, mas se não fizer, fica sem trabalhar o resto do dia. Não é um castigo formal, não mostra na tela que você foi bloqueado porque recusou, a gente chama de bloqueio branco”, explica Tiago.

Alguns dos entregadores também desconfiam que foram bloqueados por participar da manifestação no último domingo (14). Eles protestaram contra as condições de trabalho e pediram melhorias.

“Querem nos vender a ideia de que somos autônomos, mas eles que falam onde e quando você tem de trabalhar. Eles nem te falam o motivo, falam que você está bloqueado e pronto”, afirma Diógenes.

O iFood disse em nota que apoia a liberdade de expressão em todos as suas formas e mantém canais oficiais com entregadores para quaisquer dúvidas e orientações.

“O objetivo é conscientizar quem usa os aplicativos porque o consumidor final precisa saber das condições que nós trabalhamos. E queremos que os aplicativos falem com a gente, nos escutem, porque só dialogamos com um robô e queremos saber quem está por trás deles. O trabalhador tem vida, mas em plena pandemia não podemos parar. Eu costumo dizer que cada um tem sua guerra própria, que é levar comida para dentro de casa e para isso absorvermos todos o estresse das pessoas, como a fila de mercado, o trânsito. Mas somos vidas e essas vidas têm de ser valorizadas.”

A Rappi nega que tenha penalizado os entregadores por participarem das manifestações e disse em nota que reconhece o direito à livre manifestação pacífica e busca continuamente o diálogo com os entregadores parceiros de forma a melhorar a experiência oferecida a eles.

O iFood informou que os principais casos de bloqueio dos entregadores acontecem quando recebem denúncias e há evidências do descumprimento, que pode incluir, por exemplo, extravio de pedidos, fraudes de pagamento ou, ainda, cessão da conta para terceiros.

O aplicativo também informa que tem feito pesquisas com os entregadores e implementado iniciativas como o seguro de acidente pessoal, melhorias no suporte e campanhas educativas sobre segurança. “Durante a pandemia, foram implantadas medidas protetivas que incluem fundos de auxílio financeiro para quem apresentar sintomas e para aqueles que fazem parte dos grupos de risco, distribuição de kits de proteção (álcool em gel e máscaras reutilizáveis), plano de benefícios em serviço de saúde”.

De acordo com o IFood, até o momento, foram destinados mais de R$ 25 milhões a essas iniciativas.

A Rappi também informou que criou um fundo que apoiará financeiramente os entregadores parceiros com sintomas ou confirmação da Covid-19 pelo período de 15 dias gerido pela Cruz Vermelha Brasileira.

A reportagem tentou contato com a Uber Eats, mas não recebeu resposta até a publicação dessa reportagem.

Medo x necessidade

Na terça-feira (16), a Secretaria Estadual de Saúde publicou uma portaria com regras propostas pelo Ministério Público do Trabalho de Campinas que as empresas de delivery devem seguir, como o fornecimento de um kit com água, sabão e álcool em gel.

De acordo com motoboys ouvidos pela reportagem, a Rappi, por exemplo, deu um kit com máscara e álcool em gel aos motoboys apenas uma vez, há um mês. Geralmente os motoboys têm álcool gel disponível nos estabelecimentos onde buscam as entregas.

Apesar dos cuidados, Diógenes afirma ter medo de se contaminar com coronavírus. Ele mora com a esposa e com o filho, de 16 anos.

“A gente fica com medo, saio com máscara e álcool, mas Vou arrumar dinheiro onde? Mesmo que acabar a pandemia, não vão voltar os empregos tão rápido. Tenho que trabalhar muito mais, saio 9h e trabalho até 23h para conseguir pagar as contas”.

By Minuto ABC

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Relacionados

  • Visão, coração e futuro do mundo

  • Vendas do comércio caem 0,8% em julho

  • Piso salarial para enfermagem pode gerar impacto de R$ 47.183.859 no ABC